quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vencimentos
- No meu tempo não era assim. Não havia tanto vencimento. Hoje vence água, luz, prestação disso, conta daquilo. Dizia o cinqüentão, forte, encorpado, rígido na sua postura e ainda tesudo.
- No meu tempo - como se já estivesse fora da cronologia normal, numa outra dimensão. E, aí, desfiava, sem vontade de parar, as mudanças, os desencantos e esquisitices dessa época que não era a dele.
O vencimento das coisas contrariava mais. O estresse decorrente de se ter que manter tudo em dia é desgastante, pensa ele.
- No meu tempo, insistia, só havia sem remédio o dia de nascer e o de morrer, o plantio e a colheita. Fora isso, tudo se ajeitava.
Amado por esposa e filhos, já com neto, cachorro e gato, não se julgava bem servido e arranjara amante. Queria dela o frescor das carnes, o beijo macio e o apertadinho das partes. Recebia tudo isso, mas brochava toda vez que chegava o dia dos vencimentos. No tempo dele não brochara nunca, que não vencia nada que custasse fila, tempo e dinheiro.
Vencimentos à parte, a vida prosseguia, outros tempos, de outros jeitos.
Vencido ele, ninguém fazia fila, pagava ou se preocupava. Seria o caso, ingrato fato, de seu vencimento não caber nas normas desse tempo de outros?! Nem ser o objeto do vencimento valioso o bastante para despertar noutros a obrigação de quitar o devido?!
- No meu tempo...
Onaldo A Pereira
Sabor da fruta
O sabor da fruta é todo meu
que não se sabe se é dela mesmo
ou se brota de mim

Sendo dela, ela é minha
a fruta inteira
não sei se sou ou se ela é

A fruta perde a alteridade
eu me perco nela
sobra o sabor grande

Da vida, um pomar
eu nele, ele em mim
somos só sabor
e isso oferecemos.
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Vento tonto
O vento bate nos paredões de pedra
e cai tonto no capim seco
que o sacode e empurra
pra outro rumo.
Onaldo A Pereira
O fato humano
Improvisado, o grito sai mais para gemido e escorrega garganta afora, de modo a puxar após si o que de dor encontra pelo caminho. Geme a alma o seu tamanho, sofre nele o seu acanhamento e ensaia ser grito, embora saiba não ter espaço para tal. Dum pouco de cada estação da vida traz um gemido, um sofrimento, um desalento de ser contingente ao tempo e ao espaço, seus inimigos natos.
O fato humano é uma bobagem doída, um teatro sem graça, uma ida vã ao banheiro, essa disenteria sem matéria, esse vômito sem substância, ânsia desatinada de querer tudo podendo nada. Carga leve de conseqüências graves, crença sublime num credo que não se fez.
Eis aí o retrato revelado, já gasto pelo tempo, da existência humana. Essa é a existência como desenhada pelo ideário político/religioso contemporâneo. Falta-lhe o mapa interior que a leve ao destino, o senso de transcendência, a capacidade de ver para além dos véus da lida corriqueira. Romper com isso é dar uma chance à felicidade, é ser humano.

Onaldo A Pereira

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Murici
Tem sabor que sabe o caminho dos sentidos mais íntimos, aqueles que ficam adormecidos n’alma, à espera do inusitado. Falo, nesse caso, do sabor do murici. Graúdo, amarelo, anunciando seu aroma encorpado por braças de distância, cerrado adentro, ele se oferece aos bichos do sertão e também aos eventuais humanos que tiverem a fortuna de encontrar a sua árvore na estação certa.
Dei com um muricizeiro numa de minhas entradas cerrado adentro. Zanzava por uma moita de cerrado depois de uma chuva refrescante. O chão bafejava um vapor quente. Insetos e passarinhos faziam uma algazarra orgíaca. Eu acabara de avistar uma cascavel entrando num cupim e senti os arrepios do pavor que o bicho peçonhento incute. Então, senti o cheiro meu conhecido desde a mais tenra infância. Antenei o faro e o instinto caipira levou-me até o muricizeiro, a uns bons dez minutos de caminhada dali. Baixinha, retorcida e rústica, a árvore estava carregada de frutinhas amarelas, algumas já rachando e mostrando a carne branca. Entrei na farra, enchi a boca de murici, provei o sabor da vida, que ela tem desses gostos, e senti um desmembramento alegre, um tornar-me parte daquilo tudo, da brisa frescosa, do capim cheiroso, do chão gemendo de cio, e, pelas raízes, subi muricizeiro acima até seus frutos...
Na simplicidade desses momentos descobrimos a nossa universalidade, o ser Mais que uma entidade, restrita ao corpo individual. Um muricizeiro e eu, no ermo do cerrado, precioso encontro da vida.
Onaldo Alves Pereira

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O sol desce
O sol desce devagarzinho negaceando a terra
e se oculta pra ver se pega a velha
Desse namoro antigo vive o mundo
puxa os dias, empurra as horas
abre as eras
e fecha os olhos de todos
daqueles que se cansam dessa busca
de todos os que sabem amar
e se apaixonam pela vida bela
dona de tantos crepúsculos
quantos hão de haver
ou idos são
na palma de sua mão
duma só
aquela que me fez saber
o gosto do amor!
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Morte
Arredado por mão não sabida, arrepiava fácil e xingava a vida. Ele ia e vinha sem rumo. Arrancava folhas das plantas, chutava o chão, limpava os olhos sem parar e fechava com tal ênfase as mãos que fincava na pele as unhas. Era de dor graúda a feição do caboclo. Pausadamente subira-lhe o amargo à alma. Ela, inocente, dera boas vindas a cada leva de fel, disfarçado que vinha de romance. Amara errado e dera de si tudo, a cada amor. Agora, esse último, sabendo que, sofrido fazia-se inda mais carente o moço, veio com tudo. Limpou o terreno, espantou os agregados, fechou os portões e mandou feio no coração do besta.
Bela, novinha, sabida das artes de fazer cativos, quente nas carnes, suave na conversa, achada que fora numa sala de bate-papo, ela era encomendada para o desastre.
Sentindo-se amado muito, negaceava para escapulir de quem abrir os seus olhos tentasse. Entregue ao capricho dela, foi dilapidado de bens e de respeito próprio.
Na antevéspera daquela noite, dera de si de espiar o que fazia a moça no quarto do jardineiro e vira o que não queria. Dele tinha o membro na mão, imenso, vibrando no pulsar das veias intumescidas ao limite. Tinha no rosto tal rito de prazer que parecia fora de si a menina. O sorriso safado do cara encorajava os movimentos da mão dela. Com as pontas dos dedos alisava a glande, e enfiava o mindinho no buraquinho do membro. Cada detalhe, mil comparações, desejos reprimidos pela presunção de pureza da moça, leitura do que ia grafado como argumentos irrefutáveis, dos corpos engajados naquela surpresa gravada na sua alma. Ficara ali vendo e morrendo. Às vezes, ver mata. O gozo do jardineiro veio pelos cantos da boca dela.
Cuidadoso, saiu sorrateiro para não denunciar sua morte.
Tomava seu chá vespertino quando ela chegou e beijou-lhe demoradamente os lábios, lambendo-os como era de seu feitio. A mistura do adstringente do chá com o salubre do esperma, fez em sua boca o sabor mais indecente. Sabia à morte esse beijo. Ele correspondeu intensamente, abrindo-se à sua última paixão. Foi com ela para a cama e rolou o sexo mais gostoso desde que a conhecera. Fizeram planos para o futuro. Ela saiu para a cidade com o motorista, rapaz de confiança dele. Agora, acudia ao homem que ela olhava longamente o entremeio dos que vieram fazer o teste para o emprego e desse, via enfim, essa visão de morte, era notável o volume. Troncudo, cadeiras largas, nos seus trinta, cachos caindo na nuca, ele mais dançava que andava enquanto mimava a “madame”.
Ela foi comprar um presente para o seu aniversário. Fazia hoje cinqüenta anos... Ela tinha vinte. Mais gostosa que nunca essa morte.

Onaldo A Pereira

Dex’eu

Dex’eu
- Dex’eu metê você sô. Num vai duê não, dêxa só um mucadim, pruciminha, dêxa sô. Dêxa sinão choro. Tadim de mim. Eu ponho guspe pra num duê, dex’eu te cume sô.
Onaldo A Pereira

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A fruta
A fruta mordida entrega–se
mole ao apetite
e seu sumo sobra profuso
pelos cantos da boca
Onaldo A Pereira

sábado, 9 de agosto de 2008

Malemal

Malemal
Malemal equilibrado, aquele arranjo de cores, ia ameaçando espalhar-se pelo negro sujo do asfalto.
O carrinho lotado em sua capacidade e mais um milagroso pouco de frutas variadas e de flores algumas, uns pés de alfaces e, o que me interessava no momento, naquele caos, a Folha de São Paulo. Anunciando item por item numa cantinela entrecortada de gemidos e upas e ôpas, aos quase apocalipses do conjunto, a cada bacada, nessa volta ou naquele desvio, o vendedor fazia o seu comércio com sucesso. Comprei dele a Folha de São Paulo, como às vezes faço aos domingos, ao preferir não ter que caminhar até a banca.
Assim começa meu dia. Pretendo pouco dele, ler, prosear com os de casa, escrever, mimar os bichos, assuntar o tempo, puxar uma soneca e, é claro, estou aberto, sempre, a boas surpresas.

Onaldo A Pereira

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Descivilização

Descivilização
Civilização - significa o domínio da civitas/cidade, de seus valores, conceitos e produtos. Esse entendimento é baseado numa visão negativa do campo. Civilizar-se significa sair do mato, ir para a cidade. Muito da cultura ocidental foi construída sobre o desprezo pelo campo. A religião incorporou isso em sua plenitude, dando licença para que a natureza fosse dilapidada em benefício da cidade. Pagão é uma palavra que significa camponês. O campo foi onde a antiga religião resistiu e sobreviveu por séculos, apesar de perseguida – embora tenha também sido perseguidora, como parece ser da natureza das religiões fazer. A religião da natureza, das mulheres (bruxas) e do corpo, não compreendia essa separação e domínio de uma parte da natureza sobre as outras.
É tempo de vermos que precisamos de um pouco de descivilização, de uma volta reconciliatória ao campo, de um reencontro da parte com o todo. A cidade tem se transformado num monstro voraz, pronto a devorar o meio ambiente e junto com ele, também o criador da civilização, o ser humano. Cabe-nos, a nós que amamos a vida, recuperarmos o poder de fazer as misturas, de reintegrar as partes, artificialmente criadas por uma ideologia de fragmentação, que divide para escravizar. Redescobrir que sob a nomenclatura fragmentada somos um todo indivisível, corpalma, cidadecampo, inteiros como a vida!
Nisso será recuperada a vida corporificada, imensa e transcendental, começando a resolver, consequentemente, os problemas espirituais, sociais e ambientais do Planeta.
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Depende
Desse olhar que pendem
jóias, finos diamantes
depende minha vida
o penhor dela é seu

Debulha dessa espiga
mancheia de sorrisos
e semeia
e espalha
nesse campo
que se abre todo seu
que sou eu
Onaldo Alves Pereira
Barra de chocolate
Toda vez que a menina levava a barra de chocolate à boca seus olhos esbarravam com a carranca da mulher sentada à sua frente e a sua mão não conseguia alcançar a boca. Sentia como se estivesse fazendo o mais obscuro dos atos, tão eloqüente era a reprimenda vinda daquela cara ensimesmada e adstringente. O sabor do chocolate era a transgressão. Nada mais impuro diziam-lhe aqueles olhos semi-cerrados, puxando que vinham, de longínquas ancestralidades, a avaliação final e definitiva do ato da menina. “Do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás”, nesse retumbante mandamento os seus olhos ancoravam a longa linha de nãos, nãos e nãos que coibiam a volúpia degradante dos sentidos. E a menina sentia derreter-lhe entre os dedos a barra de chocolate...
Onaldo Alves Pereira

Vou chegando aos poucos.

É manhã de um dia ventoso. Poderia ser uma tarde ou um tempo meu, fora do relógio. Faço desse espaço um lugar de contar o que imagino, crio e admiro nesse mundo plástico para ser feito belo ou feio, dependendo das mãos que o atacam. Sou caipira confesso e de nascença. Se não o fosse de “parimento” o seria por conversão. Talvez. Porque sou também amante das cidades grandes e manchadas de poluição, desvario e solidão. Vejo beleza nos congestionamentos e poesia forte no estresse das pessoas presas na pressa coletiva. Gostaria de escrever, o que já faço em modo de ensaio para fazê-lo de vera. Sou hortelão compulsivo. Gosto de bichos. A Julieta deita metade no computador metade nos livros na mesa. A Isis se esparrama no chão. Os gatos são meus donos de preferência. Sou possuído por eles com prazer apesar da exploração sistemática. Os livros disputam, com chances consideráveis, esse domínio felino. Desse equilíbrio retiro estímulo para algo, não tenho que dizer o que, pois também não sei. No tempo formal contam para mim 49 anos de idade. No meu tempo, às vezes sou “aborrecente”, noutras caduco deliciosamente e, quando me convém, volto ao ventre da Mãe. Filosofo mediocremente para sobreviver. A excelência é perigosa e traz desconforto. Não gosto de nada que me tire de casa e me exponha. Prefiro o humanamente possível ao politicamente correto. Sou devoto da vida. Gente sem rótulos que eu veja os que não vejo, vão ficando. Tenho alguns preconceitos do gasto. Não dou conta de gente certa demais, do tão alardeado "cidadão de bem". Ainda bem que nunca vi um!!De tudo, prefiro o conforto do caminho do meio, as beiradas me dão vertigem!Amo a alguns, tento respeitar os demais. Bem, aos poucos e devagar, para não cansar, irei falando mais de mim e do que penso. Alerto desde já que sou fã das contradições e incoerências. Todos e todas são bem-vindos!