quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Córrego do Julião
Fomos, trieiros velhos comendo os pés, ao córrego do Julião. Águas claríssimas e profundas correndo num canal apertado. Um pulo pouco afoito e está-se do outro lado. É assim o corguinho amigo de pescarias desde que o mundo é mundo. Fato é que, às vezes, ele trata e, depois, nega peixe, fecha-se numa indiferença arrogante e faz de conta que não estamos varas, linhas e anzóis bem iscados, bulindo dentro dele.
Arrumamos a traía, a matula, a palha e o fumo forte para espantar borrachudo. O Velho observou na folhinha por detrás da porta a fase da lua, ensinou-nos a oração de S. Bento para espantar os bichos mal peçonhentos e lá chegamos, sob a solene recomendação de não fazer barulho para não espantar os peixes. Cuspindo na água, o Velho examinava os poços e as corredeiras; lambari do rabo amarelo tem muito aqui e meia dúzia deles numa capanga, alguns num gancho, inda outros, esses bagres, no embornal do Tadim.

Minha alma beira o rio
o rio me entra n’alma
sorrindo lambaris
e murmurando frescor
vai no rio minha sina
de ser alegre lambari.

Onaldo Alves Pereira

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Capaz que eu vou!
- Capaz que eu vou! Vou não, nem pensar! Reiterava sem parar a mocinha para a amiga que lhe trouxera o convite de um garoto para sair.
- Ele quer é fazer mal a mim. Capaz que vou!
Enquanto falava ela arrumava o cabelo, molhava a ponta do dedo com saliva e limpava o canto dos olhos e ajeitava saia e blusa.
- Aquele safado vem logo esfregando na gente. Capaz que vou!
Olhando o fundo da panela de alumínio que terminara de “arear”, virando-a de forma a criar um arremedo de espelho, ela apertou a maria-chiquinha no cabelo, fez careta e insistiu.
- Capaz que vou! Aquele moleque chama todas pra sair, capaz que vou!
Lavou as mãos, refrescou o rosto com água da torneira, suspirou fundo e disse:
- Tenho mais o que fazer!
Saiu rapidinho pela porta da cozinha como se fosse para o quintal. Dela só se avistou o vulto esbelto dando a volta e correndo pelo portão da rua afora.
- Capaz que ela não vai.
Disse a amiga pra si mesma e riu invejosa.
- Capaz!
Onaldo Alves Pereira

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Criei tudo isso!
Um clarão. Zumbido de abelhas. Passarinhos em revoada. As folhas dos buritis em aplausos desafinados. Ventania. O ar carregado de energia. Relâmpagos. Ajuntamento de nuvens carrancudas. Uma vozinha miúda pergunta assustada:
- Posso ficar com você?! Sem voz para responder, apenas aceno que sim.
Mãos pequenininhas me agarram o braço e um corpo tremente se achega ao meu.
O mundo desaba em pedaços de luz, de água e muito vento para espalhar tudo. E a vozinha, mais diminuída ainda, me diz entre alegre e assustada:
- Eu criei tudo isso.
Que Deus!
Onaldo Alves Pereira

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Palito de dente e o fim do mundo
Era chique (metido, como se dizia então) palitar os dentes e depois ficar rodando o palito no canto da boca. Os palitos eram feitos de lasquinhas de madeira ou de gravetos cuidadosamente trabalhados com o canivete. Ficava impressionado com as pontas finíssimas que alguns conseguiam fazer nos seus palitos que, às vezes, eram, após uso, guardados atrás da orelha ou no bolso para outra ocasião.
Mulher com palito no canto da boca era muito indecente. As que ousavam a esse ponto, se novas viravam, na mente dos homens, mulheres “fáceis”, se mais velhas, “nojentas”.
- Rapariga é que faz isso, rosnavam indignados, os mais sérios.
Esses códigos eram abundantes e interpretados à larga por todos como sinais de se prestar ou de não se prestar. Era comum a afirmação de que: “Ele não presta, fica penteando o cabelo toda hora”.
Certo que esses “não prestares” sobrava mais para as mulheres, que sempre foram sujeitas a mais restrições:
“Cortou o cabelo, podou a vergonha”.
“Mulher que pinta a cara quer chamar macho”.
Aí, surgiu o uso do pente grande, de cabo longo, que os rapazes carregavam no bolso de trás, aparecendo ou, fora dele, uma boa parte. Veio, também, a brilhantina que mudou o penteado e se popularizou rápido. Leite de Rosa, Leite de Colônia e outros produtos, tipo a pomada Minâncora e a Diadermina passaram a ser usadas pelos homens. Tudo sob muita crítica e para muito desgosto dos mais velhos.
Eram os anos de 1960 e o pior ainda estava por vir, com as calças boca-de-sino, camisas estampadonas, cabelos longos e sapatos de salto para homens e calça esporte, minissaia e cabelo curto para as mulheres. O “fim do mundo”!
Onaldo Alves Pereira